Como o Ensino Superior pode mudar a perspectiva de vida de quem passou por presídios

Nascida em Acari, na zona Norte do Rio, Kyrlane Beatriz de Oliveira, 48 anos, é um exemplo do poder da educação para transformar vidas. Abusada pelo pai por sete anos, fugiu de casa aos 15 e morou nas ruas. Se prostituiu, usou drogas e passou fome. Acusada de roubo de celulares, foi parar na prisão. Teve crises convulsivas por abstinência e tentou suicídio. O médico do presídio já havia mandado colocá-la num saco plástico quando outra detenta passou a gritar que ela estava viva. Sobreviveu. Quando retornou à cela, buscou nos livros uma forma de esquecer o crack. Tinha cursado até a 7ª série e, dentro da prisão, voltou a estudar.

Foram oito meses na cadeia até ser inocentada e ganhar a liberdade. Levou para fora das grades a vontade de continuar a aprender. Com ajuda da mãe e da ONG Educação que Liberta, concluiu o Ensino Médio. Desde o início do ano, é uma das 22 das bolsistas do Projeto Nova Rota, criado em 2020 por alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). O projeto já beneficiou cerca de 50 pessoas e a meta é inserir no ensino superior egressos do sistema prisional, a maioria em regime aberto ou livramento condicional.

Eu não acreditava mais que essa vida existia. Estou limpa de drogas há três anos e quero ajudar pessoas que estão em situação de adicção ativa. É muito difícil sair do crack, mas eu consegui
diz Kyrlane, aluna de Serviço Social da faculdade Estácio, em Madureira.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil tem uma população carcerária de 852 mil pessoas, das quais 72% têm até 30 anos de idade. De acordo com o Projeto Nova Rota, quase metade delas (46%) não concluiu o Ensino Fundamental e pouco mais de 10% completou o Ensino Médio. Apesar do baixo nível de escolaridade, apenas 16,18% estão matriculados em algum curso do sistema prisional, incluindo profissionalizantes. No Ensino Superior, são apenas 3 mil.

O ensino na prisão é vendido como um recurso para a remissão de pena, não para educar. Muitos estudam para reduzir a pena, não para mudar o cenário para a vida — diz Katherine de Almeida Martins, coordenadora do Projeto Nova Rota, especialista na área criminal.

Cada 24 horas de estudo reduz um dia de pena. Quando conseguem a liberdade, apenas 0,4% seguem estudando. Sem formação, ocupam vagas de baixa remuneração. Na prática, o crime
costuma render mais.
Os cálculos de reincidência variam, mas as menores estimativas ficam na casa de 30%. Quando o indivíduo cursa uma universidade, a perspectiva dele na sociedade muda — diz Katherine.
Ex-funcionário público, Cristiano Silva de Oliveira, 47 anos, tinha Ensino Médio completo quando recebeu uma pena de 14 anos e 14 meses de prisão, acusado de integrar uma quadrilha de fraudes com cartões de crédito.

Eu tinha ideia sobre direitos humanos, da necessidade de garantir direitos e de como as engrenagens ocorrem dentro dos presídios. Lá eu entendi que precisava me qualificar para esse debate
— diz Oliveira.

Oliveira retomou os estudos como bolsista e se formou em História em 2023. Hoje leciona na rede de educação popular Educação que Liberta. Segundo ele, em três anos do projeto, cerca de 25
pessoas conseguiram concluir o Ensino Médio e estão trabalhando. Três foram para a universidade – uma por ano.

A arquitetura dos presídios não é pensada para abrigar escolas. O ponto principal é punir, cumprir a pena. Como o número de vagas não atende a demanda, há uma seleção da própria comunidade carcerária, que escolhe quem vai poder ou não estudar — relata. As dificuldades da aprendizagem na cela são muitas. Além da falta de espaço, faltam professores. O Ensino Fundamental é mais fácil, pois depende de um único professor. O Ensino Médio, que necessita de várias disciplinas, sofre com falta de profissionais.

Mesmo quando entraves administrativos são superados, restam ainda as dificuldades de cada pessoa, que em geral depende de apoio psicológico, mentoria e ajuda de custo.

Não adianta só oferecer um curso, é preciso ajudar para que eles possam estudar — diz Kaherine.

Nascida em Rio das Ostras (RJ), Dandara Dias, 27 anos, cursa pedagogia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Quando criança, chegava a andar por quase duas horas para estudar. A dedicação aos livros começou a ser rompida num ciclo de violência doméstica. O pai morreu, a mãe se entregou ao alcoolismo e a chegada de um padrasto resultou em abuso sexual.

Depois de anos de abuso, Dandara começou a se identificar como transexual e gostava de roupas femininas. Mas ainda era um garoto de 13 anos que sofria calado. Ao denunciar o padrasto
para a mãe, acabou sendo colocado na rua. Sobreviveu com metade de um salário mínimo, que ganhava para ser monitor de informática na escola. Aos 16 foi trabalhar numa unidade da Apae. Pouco depois, começou a se entender como travesti e a performar.

A vida ficou precoce, era tudo imediatismo. Fui tentar ser feliz como mulher transgênero em Niterói — conta.

Envolveu-se com prostituição e, em 2017, Dandara acabou presa por furto a estrangeiros. Ficou presa por cerca de quatro anos e meio e voltou a estudar. Só no fim de 2018 passou ao regime aberto.

Na rua, comecei a passar fome. Passava o dia numa praça e à noite, quando chegava no presídio, tinha de comer comida azeda. Dormia numa cela com ratos e percevejos. Não aguentei e
fugi para a Rocinha — conta.

Na tentativa de ter uma vida “normal”, destransicionou. Tentou viver como homem, mas em 2019 voltou à prisão como foragida. Se tornou ativista pelos direitos dos presos até que, em maio de
2021, conseguiu a liberdade. E a única saída foi voltar para Rio das Ostras e procurar a mãe. Foi acolhida.

Comecei a refazer a rota do amor -— diz Dandara, que foi trabalhar como frentista e, em seguida, como merendeira escolar.

Em 2022, passou no vestibular da Uerj, conseguiu estágio numa escola, onde começou a dar aulas de redação no pósturno. Ganhou visibilidade ao trabalhar o tema antirracismo e fazer um memorial das vítimas de violência do Estado. Se engajou no terceiro setor, num trabalho de apoio a mulheres encarceradas, e criou o Instituto Mama Thula, de assistência e apoio jurídico. Em 2023, completou sua transição de gênero.

Só agora entendi que já consigo não ser vítima de violência. E a ferramenta é o acesso à educação — diz ela.

Membro da Rede de Defensores dos Direitos Humanos da Fiocruz, Dandara integra agora a Rede Global de Acadêmicos da Liberdade — ou GFS (Global Freedom Scholars Network) —,
que reúne pessoas que obtiveram diplomas universitários durante a prisão, em regime fechado ou semiaberto, ou que seguiram estudando na condição de liberdade.

A rede realizou um encontro mundial no Brasil, no ano passado, e criou uma plataforma online, uma espécie de rede social, que permite a criação de perfis. O objetivo é promover contato com
acadêmicos e membros da comunidade empresarial que possam atuar como mentores e empregadores dos alunos da rede.

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